O médium de vida simples que se tornou o principal ícone do espiritismo tem seu centenário festejado com grandes produções no cinema, no teatro e na literatura
Eliane Lobato
O FILME
O ator Nelson Xavier na pele de Chico (ao fundo): semelhança impressionante
Uma Minas Gerais agrária e bucólica é o pano de fundo adequado para a história de um menino em constante turbulência interna. Ele ouve vozes e vê pessoas mortas. Tachado de maluco, o garoto, nascido Francisco de Paula Cândido Xavier, sofre muito, especialmente nas mãos de uma madrinha católica que o considera pactuado com o diabo. A história deste menino que virou o maior médium brasileiro está contada no filme “Chico Xavier”, de Daniel Filho, que estreia no dia 2 de abril, data em que ele completaria 100 anos, se não tivesse desencarnado, como dizia, oito anos atrás. O filme — a que ISTOÉ assistiu em primeira mão (leia quadro) — é o carro-chefe de uma série de produções e homenagens, como lançamentos de livros, fi lmes inspirados em obras psicografadas, selo, exposições e seminários. Até uma novela da Rede Globo, que tem o espiritismo como tema, estreia, coincidentemente, no mês do centenário: “Entre Dois Amores”, escrita por Elizabeth Jhin.
VIDA E OBRA
Chico Xavier na produção de Daniel Filho. E em Uberaba, no meio do povo.
O médium, cultuado em vida, ganha, na comemoração de seus 100 anos, visibilidade de superstar e vira fenômeno de mídia, algo que nunca esteve entre suas pretensões. Se existe mesmo vida após a morte, Chico Xavier deve estar feliz: seu legado ultrapassa, hoje, as barreiras religiosas e ele é reconhecido como o maior líder espiritual que o Brasil já teve. O espantoso alcance da obra de Chico Xavier explica tamanha agitação em torno de seu centenário. Mesmo quem não acredita em reencarnação, respeita este homem que psicografou mais de 400 livros e doou os direitos autorais de todos eles a obras de caridade. Chico Xavier viveu em uma casa humilde e levou vida modesta. É de Nelson Xavier, o ator com impressionante semelhança física com o médium e que o interpreta na fase adulta, a síntese de sua existência: “Ele viveu, efetivamente, o ‘amai-vos uns aos outros.’” O ator admite que o filme modificou suas crenças. “Como todo socialista eu também acreditava que o caminho da violência era o único possível, que os privilégios jamais serão abolidos sem confronto. Mas, agora, penso diferente.
VIDA E OBRA
O ator Ângelo Antônio, o médium quando jovem, e Chico psicografando.
O Chico me mostrou que o caminho do amor é que é o único possível.” A pregação do médium é comparada, hoje, à de Buda: mais ligada a uma filosofia de vida do que a uma religião. “A doutrina espírita pregada por Chico Xavier esclarece, conforta e consola”, resume o escritor Gérson Monteiro, também diretor da primeira rádio espírita do País, a Rádio Rio de Janeiro, e que vai lançar, este ano, “O que Ensina o Espiritismo” (Mauad). Sua análise coincide com a de Eurípedes Higino dos Reis, 60 anos, fi lho adotivo e herdeiro da patente Chico Xavier. “Meu pai não era procurado só por espíritas. Ao contrário, 70% das pessoas que o procuravam tinham outras religiões”, afi rma Reis. A expansão do espiritismo no Brasil está profundamente ligada à fi gura de Chico Xavier, que, para muitos, surgiu para complementar e atualizar os ensinamentos de Allan Kardec, o pai do espiritismo. O fi lão literário foi puxado por ele desde que publicou, aos 22 anos, sua primeira obra, “Parnaso de Além- Túmulo”. Hoje, existem no País aproximadamente 100 editoras especializadas e quatro mil títulos no mercado. Ao publicar obras romanceadas, o médium brasileiro cria uma nova forma, calcada mais na emoção, subjetividade e no lirismo, de apresentar a religião às pessoas.
Antecessores como Kardec e Bezerra de Menezes redigiram, basicamente, livros doutrinários que mais se assemelhavam a tratados de sociologia, um trabalho mais científico e racional. “O romance espírita é um dos legados de Chico”, afirma Eduardo Re alefsky, pesquisador de comunicação religiosa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. “Kardec foi racional do início ao fim. Já Chico, colocou em prática um vasto conteúdo sentimental.” O médium também é responsável por deixar impressa uma nova visão, quase milenarista, do papel do Brasil dentro do desenvolvimento da doutrina espírita. Em um de seus livros, Chico Xavier defende a ideia de que o País seria o principal veículo para a difusão do espiritismo no mundo. “Coincidência ou não, o Brasil é considerado o local onde as ideias das religiões tiveram o maior desenvolvimento, ainda que a maior parte dos espíritas permaneça invisível para o IBGE”, diz Re alefsky, referindo-se ao Censo de 2000 que aponta como espíritas apenas 3% da população. Chico Xavier é o autor brasileiro de maior sucesso. Ele já vendeu quase o dobro dos livros de Paulo Coelho, nossa referência de best-seller literário. Seus 458 livros somam aproximadamente 45 milhões de cópias vendidas, segundo Cesar Perri, diretor da Federação Espírita Brasileira. “Somente ‘Nosso Lar’ tem 2,5 milhões de edições comercializadas em 15 idiomas”, afirma.
Não por acaso, este livro também vai virar filme, sob a direção de Wagner de Assis. E, ao contrário do longa de Daniel Filho, será repleto de efeitos especiais, que foram supervisionados por Geoff D. E. Scott, da empresa canadense Intelligent Creatures (“Watchmen” e “Babel”, entre outros). “O filme se passa, em grande parte, numa cidade localizada em um outro plano, o espiritual. Este é o maior motivo da grande presença dos efeitos”, explica a produtora Eliane Britz. “É importante que o público acredite que as ações estão acontecendo em uma cidade praticamente real. Isso é fundamental para a história”, acrescenta ela. A previsão é de estreia em setembro. Outros três fi lmes também serão lançados – “E a Vida Continua”, com direção de Paulo Figueiredo, “As Cartas”, de Cristiana Grumbach, e “As mães de Chico Xavier”, com três assinaturas na direção, Glauber Filho, Joel Pimentel e Halder Gomes – todos baseados em obras psicografas pelo médium. Ao contrário, “Chico Xavier” é o único biográfi co. Grande parte da trama foi fi lmada em Tiradentes, Minas Gerais, onde aconteceram alguns fenômenos. Certo dia, uma forte chuva que caía sobre a cidade só não atingia o set de filmagem.
O médium popularizou a doutrina espírita ao criar obras romanceadas,
mais calcadas na emoção
Quando o diretor finalizou o trabalho e disse “Corta!”, a chuva despencou também no local onde artistas e técnicos estavam. “Chamo isso de sincronia de sinais”, disse Ângelo Antônio, um dos “Chicos” da produção. Ele se refere não somente a este episódio. O ator conta um outro fato surpreendente. A pedido de sua mãe, que conheceu o médium pessoalmente, ele interpretou um momento em que seu personagem recebia mensagens. A mãe, então, pediu que ele perguntasse ao espírito de Chico como estava a saúde dela. “E eu fui escrevendo. Depois, quando fui ler, era uma receita dizendo que ela deveria consumir fl or de mamão em determinada hora do dia.” Ele não sabe por que escreveu aquilo. Mas foi uma indicação certa: “Minha mãe estava com problemas no intestino, embora eu ainda não soubesse”, relembra. Para registrar estes fenômenos, a editora LeYa lançará outro livro de Marcel Souto Maior sobre os bastidores da produção.“Chico Xavier, a História do Filme de Daniel Filho” chegará às prateleiras também no dia 2 de abril, com tiragem inicial de 50 mil exemplares. “Conversei com o Tony Ramos, que é muito católico, sobre como foi estar no filme que fala do maior líder espírita do País.
O médium de vida simples que se tornou o principal ícone do espiritismo tem seu centenário festejado com grandes produções no cinema, no teatro e na literatura
Eliane Lobato
Chico passou a juventude em Pedro Leopoldo, de onde saiu por se sentir perseguido
Após a exibição do filme para a equipe, ele era um dos que mais se emocionaram”, conta Souto Maior. Até personagem de história em quadrinhos o médium será. Com desenhos de Rodolfo Zalla e roteiro de Franco de Rosa, “Chico Xavier em Quadrinhos” (Ediouro) contará a história da vida dele e trará, também, alguns textos psicografados pelo médium. O jeito calmo, humilde e simples dá a Chico Xavier uma aparência de fragilidade. Para conseguir repassar essa característica em seu fi lme, Daniel Filho disse ter pedido aos três atores que o interpretam em seu longa para mergulharem no universo do líder espiritual. “Eles ficaram em Uberaba durante algum tempo. Lá, foram cedidas roupas dele ao Nelson (Xavier) e um perfume ao Ângelo (Antônio). E o garoto (Matheus Costa) não rodou uma cena sem, antes, sentir a essência do perfume que ele usava”, conta Daniel Filho. Além de todas as obras culturais que divulgarão o nome de Chico Xavier e a doutrina espírita no Brasil, este ano, uma novela da Rede Globo, “Entre Dois Amores”, colocará em confronto a questão da vida após a morte e a ciência. “Tenho grande interesse pelo tema espiritualidade e pensei que podia trazer para a trama inquietações pelas quais todos passamos: De onde viemos? Para onde vamos?”, diz a autora do folhetim, Elizabeth Jhin.
POPULAR
Ele era muito querido pelo público.Nelson Xavier, caracterizado, consola Christiane Torloni, que interpreta
uma mãe que perdeu o filho
Ela vai reproduzir a inquietação natural entre esses dois mundos aparentemente antagonistas defi nitivos, a ciência e a espiritualidade. Superstar também nas artes cênicas, a peça “Além da Vida” já foi vista, em diversas remontagens, por mais de dois milhões de pessoas – e voltará à cena, em abril, no Teatro Corinthians, em São Paulo. O ator e diretor do espetáculo, Renato Prieto, monta peças espíritas há 25 anos pelo Brasil afora e diz ser testemunha da fé leiga nos ensinamentos do médium. “As pessoas vão às minhas peças em busca de respostas: ‘De onde eu vim?’ ‘O que vim fazer aqui?’ ‘Para onde vou após desencarnar?’ E elas saem do teatro com um conceito que as tranquiliza”, diz Prieto. A esperança e a possibilidade de paz são os principais motes da obra de Chico Xavier. Uma de suas frases mais recorrentes – que ele dizia ter sido formulada pelo guia espiritual Emmanuel – afirma que “ninguém pode voltar atrás e fazer um novo começo. Mas qualquer um pode recomeçar e fazer um novo fim.”
Colaboraram: Adriana Prado, Caio Barretto Briso, Maíra Magro, Rodrigo Cardoso e Francisco Alves Filho
FILME PARA ARREBATAR MULTIDÕES
INTÉRPRETES
O diretor Daniel Filho entre Nelson Xavier (à esq.) e Ângelo Antônio, que vivem o médium
O filme “Chico Xavier”, de Daniel Filho — ao qual ISTOÉ assistiu em primeira mão —, carrega uma extraordinária carga de emoção e deverá levar muita gente às lágrimas. Ainda menino, Chico (Matheus Costa) apanha muito da madrinha Rita (Giulia Gam em aparição relâmpago, mas brilhante), que chega a espetá-lo com um garfo na barriga. Jovem, já na pele de Ângelo Antônio, ele perde um de seus 13 irmãos, justamente o seu “braço direito”, vítima de derrame. No enterro, o pai diz, aos gritos, que ele é uma farsa incapaz de salvar alguém. O Chico adulto é interpretado por Nelson Xavier — que mais parece uma materialização do médium. E Christiane Torloni assina uma das cenas mais emocionantes quando sua personagem, Glória, entra no quarto do fi lho que já morreu e, abraçada a uma cama vazia, chora sua dor. Muitos espectadores vão se perguntar como a atriz, que perdeu um fi lho num acidente de carro na vida real, conseguiu encarar o papel. “Ela se concentrou, chorou, reviveu aquilo. Deixou aparecer a dor, deixou passar a realidade. Fico emocionado ao dizer isso porque o filho que ela perdeu era um afi lhado meu. E isso, inclusive, foi o que me deu coragem para fazer o convite”, disse Daniel Filho.
Baseado no livro “As Vidas de Chico Xavier”, de Marcel Souto Maior, o roteiro não foge das acusações de falsário que também existiram na vida do médium. Numa sessão espírita, uma mulher cospe em Chico Xavier dizendo que a carta que lhe entregara como sendo do filho desencarnado era uma grosseira fraude. Também um ex-assistente e sobrinho do médium, revoltado porque o tio o repreendera por cobrar consultas, dá entrevistas dizendo que as conversas com espíritos eram armação. Por incrível que pareça, um ombro amigo dos mais fiéis, desde a infância, é um padre católico (Pedro Paulo Rangel). No dia em que este padre morre, entretanto, Chico é escorraçado do velório pelo padre substituto (Cássio Gabus Mendes) — que se torna um obstinado pregador contra ele.
Mas nem tudo é tristeza. Também há humor. Como no dia em que o médium decide começar a usar uma ridícula peruca para esconder a calvície ou quando grita tanto dentro de um avião em turbulência que seu guia espiritual aparece para um curioso papo-cabeça. Afinal, não fica bem um médium ter tanto medo de morrer. Ao final, enquanto rolam os créditos, há imagens do próprio Chico relatando o episódio no programa “Pinga-Fogo”, da extinta TV Tupi. O elenco conta, ainda, com estrelas como Letícia Sabatella, Giovanna Antonelli, Tony Ramos, Cássia Kiss, Paulo Goulart e Luis Melo.
Ele ainda está presente - Parte I
Como a memória do maior líder espírita do Brasil continua viva nas cidades mineiras onde ele construiu sua obra
Rodrigo Cardoso, de Pedro Leopoldo e Uberaba (MG)
NO PAPEL
Mensagem recebida por Celso Afonso atribuída a Chico Xavier
Francisco Cândido Xavier nasceu há 100 anos, em 2 de abril, em Pedro Leopoldo, e morreu oito anos atrás, em Uberaba. Cidades mineiras distintas – mais modesta, a primeira tem 60 mil habitantes, enquanto a outra, distante 510 quilômetros, é seis vezes mais populosa –, elas ostentam o privilégio de preservar viva a memória daquele que é considerado o apóstolo do espiritismo no mundo. Curiosamente, irão celebrar de forma muito diferente o centenário do médium. Em Pedro Leopoldo, de onde saiu por se sentir perseguido, a data será lembrada de forma festiva, com vários eventos. Em Uberaba, a cidade que o acolheu e projetou sua obra, a comemoração será silenciosa e quase envergonhada. O médium deixou sua cidade natal em 1959, aos 49 anos, depois que um sobrinho o acusou, por meio da imprensa, de inventar que psicografava. Aborrecido e perseguido por repórteres que passavam madrugadas na porta de sua casa, ele se cansou de dormir em bancos de praça e partiu, com a roupa do corpo, para o encontro de um amigo em Uberaba. Desde então, Chico visitava Pedro Leopoldo somente três vezes por ano.
MEMÓRIA
Eurípedes dos Reis, filho adotivo de Chico, transformou a casa dele em museu e livraria
Manteve essa rotina até 1987, quando passou o Réveillon e visitou o asilo da cidade. Na maioria das vezes, além de rever amigos e parentes, ele checava se estava tudo em ordem com a última casa que lhe serviu de residência e ficou abandonada desde sua mudança. O local, hoje, pertence a um grande amigo do religioso, o empresário Geraldo Lemos Neto, 47 anos, que a transformou em um centro de referência sobre a vida do médium, batizada de Casa de Chico. Desde 2006, 50 mil pessoas já visitaram a Casa, que passou por um processo de revitalização, mas ainda preserva quartos, banheiros e cozinha exatamente como Chico os deixou. Estão lá, por exemplo, as bandeiras de Minas Gerais e do Brasil que cobriram o caixão do líder espiritual em seu velório. A joia do local, porém, é o acervo bibliográfico. Neto possui todos os livros publicados pelo amigo (458) – muitos, da primeira edição – e outros 180 títulos escritos sobre o médium. “É pouco explorado, mas Chico tinha uma personalidade muito forte, principalmente quando não faziam suas vontades”, lembra o empresário, mostrando a banheira onde o mineiro gostava de se lavar. “Era assim também em relação à doutrina, tanto que se afastou de alguns amigos e centros.
Psicografias inéditas dele serão compiladas para a confecção de novos livros
” Vice-presidente do Centro Luiz Gonzaga, fundado por Chico em 1927, a professora aposentada Célia Diniz, 59 anos, recorda o dia em que ele lhe explicou a mudança repentina de cidade. “Chico disse: ‘Saí em busca de um clima mais ameno e porque a minha família não tinha culpa de ter um médium dentro dela. Ela teria a privacidade invadida onde quer que eu estivesse em Pedro Leopoldo’”, conta Célia. Da família numerosa – os Xavier eram 14 irmãos, fruto de dois casamentos de João Cândido Xavier –, apenas uma irmã de Chico, Cidália Xavier de Carvalho, 87 anos, está viva. O último dos irmãos do sexo masculino, André Luiz, morreu aos 91 anos, no final do ano passado. O médium não tinha parentes em Uberaba, mas se cercou de pessoas fiéis que respeitavam suas vontades e sua opção por uma vida desprendida de bens materiais. Na cidade mineira, em cada esquina tem alguém sempre disposto a contar um “causo” do líder espiritual. Poucos, porém, tiveram passe livre dentro de sua casa – transformada em museu e livraria pelo seu filho adotivo, Eurípedes Higino dos Reis – e desfrutaram da intimidade do hoje mito religioso. Barbeiro que atendia Chico em seu quarto, aparando-lhe a barba e cortando os cabelos de suas perucas, Belmiro Chagas Neto, 60 anos, solta uma sonora gargalhada ao relembrar a porção espirituosa do amigo. “Certo dia, uma pessoa perguntou a ele se fazia mal criar gato.
ESPÓLIO
O médium Celso Afonso, um dos mais procurados de Uberaba desde a morte de Chico.
E ouviu: ‘Sim, minha filha, para os ratos’”, conta Neto, que guarda todos os aparelhos de barbear usados no companheiro de três décadas. O religioso mineiro criava cachorros e gatos em seu quintal. Era comum vê-lo acordar às 6h, depois de varar a madrugada psicografando ou atendendo pessoas, para dar leite aos animais. Às vezes, quem o substituía nessa tarefa era Dinorá Cândida Fabiano. Durante 40 anos, ela foi um misto de cozinheira, enfermeira e massagista. “Todo dia, antes de eu ir embora, ele me dizia para não esquecer de colocar duas, três cadeiras no quarto dele. Acho que era para os espíritos sentarem”, conta. Aos 78 anos, Dinorá se emociona ao falar sobre o dia em que seu patrão, já com a saúde debilitada, a visitou no hospital de cadeira de rodas. E diz que “até de pôr o sapato no pé dele” sente falta. “Ele dizia para eu forrar com jornal para não passar frio.” Três pares de sapatos de Chico estão expostos no quarto onde ele deu o último suspiro, no dia em que a Seleção Brasileira se tornou pentacampeã do mundo, em 30 de junho de 2002. “Ele perguntou para mim: ‘O Brasil ganhou o jogo?’ Eu falei que sim e ele comentou: ‘Então, o Brasil está feliz. Que bom’”, recorda o filho Eurípedes. A amiga do médium, Kátia Maria, que se afastou do trabalho nos últimos três anos da vida de Chico para dedicar-se em tempo integral ao líder espiritual, conta que Ti-Chico, como ela o chama, avisou a todos que partiria no dia em que o País estivesse bem feliz. “Às 19h20, enquanto eu media a temperatura dele, Ti-Chico morreu no meu colo”, diz ela, que nunca foi espírita.
Ele ainda está presente - Parte 2
Como a memória do maior líder espírita do Brasil continua viva nas cidades mineiras onde ele construiu sua obra
Rodrigo Cardoso, de Pedro Leopoldo e Uberaba (MG)
No quarto preservado do médium, uma das atrações do museu, em Uberaba, estão ainda 13 imagens de santos, como São Francisco de Assis, Santa Sara e São João Bosco. Há ainda perucas, boinas, dentaduras e a cadeira de rodas que o acompanhou nos últimos momentos de vida. “Chico nunca pediu para alguém se converter ao espiritismo”, conta Célia, do Centro Luiz Gonzaga. “Ele foi o bandeirante da mediunidade. As pessoas atiravam pedras, mas ele seguia desbravando”, reforça o empresário Neto, da Casa de Chico. De fato, o mineiro foi julgado e tachado de louco e mentiroso, abriu mão do conforto e conviveu com problemas de saúde desde muito novo, sem reclamar de nada. “Eu o vi gastar dinheiro para transferir uma fazenda, em Goiás, que lhe foi doada por um milionário goiano, para poder entregá-la o quanto antes para os pobres”, conta Eurípedes Tahan, 73 anos, seu médico pessoal. “Gostaria de ser sucessor de Chico ou, como muita gente, ser como ele. Mas não dou conta de amar, trabalhar, ter a paciência e a capacidade de perdoar que ele tinha”, diz o aposentado Celso de Almeida Afonso. Aos 68 anos – 28 de psicografia –, Afonso se tornou um dos médiuns mais procurados em Uberaba depois da morte de Chico. Apesar de ter psicografado 18 mil mensagens, de acordo com suas contas, ele diz ter preguiça de escrever. Por outro lado, relata ter recebido seis mensagens assinadas pelo maior nome do espiritismo nacional.
Na “Casa de Chico”, em Pedro Leopoldo, estão os 458 livros publicados pelo médium e outros 180 títulos sobre ele.
LAR
A casa onde funcionou o centro espírita do médium, em Uberaba
“Entendo que estou sendo agraciado sem que o não mereça, mas cabe- me saber que sou, o que fiz e o que pretendo ainda realiza…”, diz um trecho da última,segundo ele, ditada por Chico Xavier, em meados de dezembro passado. Outro médium de Uberaba e antigo frequentador do Grupo Espírita da Prece, fundado por Chico em 1975, Carlos Baccelli, foi mais ousado. Ele publicou três livros com mensagens de Chico psicografadas, segundo afirma, por ele. “Eu sou um médium resolvido. Eu esperava, sim, receber mensagens do Chico. Esses 25 anos de convivência tornaram fácil essa sintonia. Tem de haver algum grau de afinidade entre o médium e o espírito”, afirma ele, com 120 livros no currículo e autor do recémlançado “100 Anos de Chico Xavier – Fenômeno Humano e Mediúnico”. Eurípedes, o filho de Chico, refuta a ideia de que seu pai tenha feito contato com Afonso, Baccelli ou qualquer outra pessoa, argumentando que o pai teria deixado um código para ele, a amiga Kátia Maria e o médico Tahan poderem identificar um recado autêntico (leia quadro). É Eurípedes quem administra o museu, a livraria e o Grupo da Prece e Assistência Chico Xavier, que oferece jantar para pessoas carentes e distribui enxovais para gestantes.
TESOURA E NAVALHA
Belmiro Neto, barbeiro de Chico: ele aparava as perucas do amigo de 30 anos
Também estão em seu poder psicografias inéditas do pai, que serão compiladas para a confecção de meia dúzia de novos livros. No dia seguinte ao aniversário do pai, Eurípedes fará um bolo de 160 quilos para ser distribuído para quem visitar o museu. “Meu pai consolava as mães que perderam seus filhos, dizendo para elas distribuírem um bolo no aniversário deles, pois seria a melhor maneira de homenageá-los”, conta. “Faço isso todo ano, como ele ensinou, porque a saudade do meu pai é grande.” Ainda não está programado nenhum outro evento em comemoração ao centenário daquele que colocou Uberaba em destaque no mapa mundial. Os uberabenses costumam comentar que a morte de Chico teve o impacto da perda de uma indústria. A movimentação na cidade tem aumentado, como contam os comerciantes. Nada comparável à época em que Chico reinava diante de um séquito, entre presidentes da República, artistas e empresários, que toda semana o visitavam e contribuíam para o PIB de Uberaba. “Nossa cidade é, da parte da classe política, muito ingrata com Chico”, reclama o médium Baccelli. “Ele desencarnou há quase oito anos e não há uma rua ou praça com seu nome. E a única ação pública, o memorial Chico Xavier, é uma novela que já dura quatro anos.
Ao contrário de Pedro Leopoldo, em Uberaba não há uma rua ou praça que homenageiem o médium
” Em Pedro Leopoldo o cenário é outro. A começar pela existência da Fundação Cultural Chico Xavier, que tem por objetivo promover a vida e a obra do médium. Mais: por meio de uma votação, a população elegeu os locais tidos como obrigatórios para os visitantes que pretendem saber um pouco mais sobre o religioso. Assim, viraram pontos turísticos a casa onde Chico nasceu e hoje abriga o Centro Luiz Gonzaga, a construção onde viveu, atualmente Casa de Chico, a Fazenda Modelo, endereço de seu antigo trabalho, o açude, próximo do qual ele teve o primeiro contato com Emmanuel, seu maior guia espiritual, o centro espírita Meimei, fundado por Chico, e a praça Chico Xavier. Entre 30 de junho e 10 de julho, Pedro Leopoldo será a sede da 8a. Semana Espírita Chico Xavier e palco de apresentações teatrais e ciclo de palestras. Em junho também será lançada a primeira biografia do maior médium do Brasil escrita por um cidadão pedro-leopoldense. O autor, o psicólogo e professor de educação física John Harley Madureira Marques, conviveu com Chico por 21 anos e está há dois trabalhando na obra, cujo título é mantido em segredo. Fazia tempo que Chico Xavier não ficava tão próximo das pessoas que o viram crescer e triunfar na missão a que ele se propôs. Não precisa ser nenhum médium para sentir sua presença em Minas Gerais.
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