sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O Poder do Ridículo



Lendo um jornal, encontramos esta frase proverbial: Na França o ridículo sempre mata. Isto nos sugeriu as seguintes reflexões:

Por que na França, e não em outra parte? É que aqui, mais que em qualquer lugar, o espírito, ao mesmo tempo fino, cáustico e jovial, apreende, antes de tudo, o lado alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer fareja-o; descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom-gosto, a urbanidade até no gracejo; ri de bom grado de uma pilhéria fina, delicada, espirituosa sobretudo, ao passo que as caricaturas insossas, a crítica pesada, grosseira, à queima-roupa, semelhante à pata do urso ou ao soco do bruto, lhe repugnam, porque tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.

Talvez digam que certos sucessos modernos parecem desmentir essas qualidades. Muito haveria a dizer sobre as causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, de passagem, que esses sucessos que surpreendem as pessoas de bom-gosto, são, em grande parte, devidos à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas escutai a multidão à saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo, resume-se nestas palavras: É repugnante! e, contudo, a gente veio, unicamente para poder dizer que viu uma excentricidade; lá não voltam, mas esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é tudo o que pedem. Dá-se o mesmo em certos sucessos supostamente literários.

A aptidão do espírito francês em captar o lado cômico das coisas, faz do ridículo uma verdadeira potência, maior na França do que em outros países; mas é certo dizer que sempre mata?

É preciso distinguir o que se pode chamar o ridículo intrínseco, isto é, inerente à coisa mesma, e o ridículo extrínseco, vindo de fora e descarregado sobre uma coisa. Sem dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável; quando se ataca às coisas que não dão ensejo a isto, desliza sem prejudicá-las. A mais grosseira caricatura de uma estátua irreprochável nada tira de seu mérito e não a faz diminuir na opinião, pois cada um está em condições de apreciá-la.

O ridículo não tem força senão quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os pequenos defeitos reais: é então que mata; mas quando cai no falso, absolutamente não mata, ou antes, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente verdadeiro, dever-se-ia dizer: “Na França, o ridículo sempre mata o que é ridículo.” O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se se ridicularizar uma personalidade notoriamente respeitável, o cura Vianney, por exemplo, inspirar-se-á repulsa, mesmo aos incrédulos, tanto é verdade que o que é respeitável em si é sempre respeitado pela opinião pública.

Como nem todos têm o mesmo gosto, nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns, pode não o ser para outros. Quem, pois, será o juiz? O ser coletivo que se chama todo o mundo, e contra as decisões do qual em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas não as massas, cujos julgamentos acabam sempre por triunfar. Se a maioria dos convivas num banquete acha um prato a seu gosto, por mais que digais que é ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.

Isto explica por que o ridículo, lançado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não é por não ter sido revolvido em todos os sentidos, mascarado, desnaturado, grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. E, contudo, após dez anos de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca; é que ele é como a estátua de que falamos há pouco.

Em última análise, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? Naquilo em que realmente é vulnerável à crítica: os abusos, as excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou a defesa, mas que tem, ao contrário, sempre desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, nem pôde morder senão o que era ridículo na maneira por que certas pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ainda não matou completamente esses abusos, desferiu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.

O Espiritismo verdadeiro não pôde, pois, senão ganhar em se desembaraçar da chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente dita, é de notar que quase sempre ficou fora de debate, embora seja a parte principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo não podia atingi-lo; sentiram que a fina lâmina da zombaria espirituosa resvalava sobre a couraça, daí por que o atacaram com a borduna da injúria grosseira e o soco rústico, mas com tão pouco sucesso.

Desde o início o Espiritismo pareceu a certos pobretões, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam, puseram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser chamados de espíritas de circunstância.

Que teria acontecido a esta Doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Ter-se-iam visto os charlatães pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de mais sagrado: o respeito aos mortos, com a suspeita arte das feiticeiras, adivinhos, cartomantes, videntes, suprindo os Espíritos pela fraude, quando estes não vêm. Logo se teriam visto as manifestações levadas para os palcos, associadas aos truques de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse transmitir-se à maneira de um fundo de comércio.

Por seu silêncio, que teria sido uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos; diremos mais: cúmplice. Então a crítica teria feito um belo jogo, porque, com todo o direito, poderia ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, houvera assumido a responsabilidade do ridículo e, por consequência, a justa reprovação lançada sobre os abusos; talvez ela tivesse levado mais de um século para erguer-se desse fracasso. Seria preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares possam ser úteis à sua propagação e estejam aptos para o considerarem como uma coisa santa e respeitável.

Estigmatizando a exploração, como temos feito, temos certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque caminhava para o seu descrédito; por isto mesmo, ela lhes teria apresentado um lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos afastamos de seus partidários. Mas, que importa? Nosso dever é resguardar os interesses da Doutrina, e não os deles, e esse dever nós cumpriremos com perseverança e firmeza até o fim.

Não era pouca coisa lutar contra a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo estimulado, muitas vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do Espiritismo, porquanto, depois de ter fracassado pelos argumentos, bem compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo. Por isso, o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de o desacreditar na opinião.

Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não serão alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo, como chamariz à minoria, que darão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo, porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será para servirem de comparsas ou de cúmplices a tanto por sessão; por isso riem deles; acham ridículo que a essas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão cem vezes com a razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que se afastarão, sem dele quererem ouvir falar mais. Outra será a impressão nos meios onde nada de equívoco pode fazer suspeitar da sinceridade, da boa-fé e do desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não se sai convencido, pelo menos não se leva a ideia de uma charlatanice.

Assim, o Espiritismo nada tem a ganhar, e só poderia perder, apoiando-se na exploração, enquanto os exploradores é que se beneficiariam de seu crédito. Seu futuro não está na crença de um indivíduo a tal ou qual fato de manifestação; está inteiramente no ascendente que conquistar por sua moralidade. É por aí que triunfou e triunfará ainda das manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e é o que não lhe poderão tirar.

O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá grandes lutas a sustentar; é preciso, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser forte, deve ser respeitado. Cabe aos seus adeptos dedicados fazê-lo respeitar, inicialmente pregando-o pela palavra e pelo exemplo; depois, desaprovando, em nome da Doutrina, tudo quanto pudesse prejudicar a consideração de que deve ser rodeado. É assim que poderá afrontar as intrigas, a zombaria e o ridículo.

Allan Kardec.

Fonte: Revista Espírita fev/1869 - tradução de Evandro Noleto Bezerra - Editora: FEB.

Nenhum comentário:

Postar um comentário