Allan
Kardec - modelo de circunspecção recolhimento
Poderíamos imaginar, nos dias de hoje, um jovem naturalmente calmo, recolhido,
circunspecto?
Essas qualidades naturais em um jovem são raras e indicam um Espírito elevado
aí encarnado. Em se tratando de
um Espírito superior encarnado, essas qualidades lhe são inerentes desde a
infância. Pois Kardec deve ter sido uma tal criança, um tal jovem.
Nós o surpreendemos, num artigo publicado na Revista Espírita, falando um pouco
sobre si mesmo. Reproduzimos aqui um parte de sua fala:
“Enquanto eu estava calmamente na
cama, um de nossos amigos me viu várias vezes em sua casa, posto que sob uma
aparência não tangível, sentando-me a seu lado e conversando com ele, como de
hábito. Uma vez ele me viu de roupão, outras vezes de paletó. Transcreveu nossa
conversa e no-la remeteu no dia seguinte. Percebe-se bem que era relativa a
nossos trabalhos prediletos. Querendo fazer uma experiência, ofereceu-me
refresco. Eis a minha resposta: ‘Não
tenho necessidade disto, porque não é o meu corpo que está aqui, vós o sabeis. Não há a menor necessidade, portanto, de
criar para vós uma ilusão.'
Uma circunstância muito estranha apresentou-se naquela ocasião. Seja por
disposição natural, ou seja resultado de nossos trabalhos intelectuais, sérios
desde a minha juventude, poderíamos dizer, desde a infância, o fundo de meu
caráter foi sempre de extrema gravidade, mesmo na idade em que não se pensa
senão no prazer. Esta preocupação constante me dá uma aparência de frieza, mesmo de
muita frieza. É isto, pelo menos, o que muitas vezes
me tem sido censurado. Mas sob esse envoltório aparentemente glacial, talvez o
Espírito sinta mais vivamente do que se tivesse uma maior expansão exterior.
Ora, em minhas visitas noturnas ao nosso amigo, ele ficou muito surpreso por me
ver completamente diferente; estava mais aberto, mais comunicativo, quase
alegre. Tudo respirava em mim a satisfação e a calma do bem-estar. Não estará aí um
efeito do Espírito desprendido da matéria?"[1]
Em suas obras Kardec chama a nossa atenção para a necessidade da seriedade, do
recolhimento da pureza de intenções como condição indispensável para a
assistência dos bons Espíritos e das boas comunicações. Vamos reproduzir,
nestas reflexões sobre o recolhimento, alguns trechos das recomendações dadas
pelo nosso Mestre, e que poderão servir ao espírita, individualmente, e aos
grupos espíritas que desejam bem se conduzir.
Disse ele: “O concurso dos bons
Espíritos, tal é, com efeito, a
condição sem a qual não se pode esperar a Verdade. Ora, depende de nós obter
esse concurso. A primeira de todas as condições para merecermos a sua simpatia é o
recolhimento e a pureza das intenções. Os Espíritos sérios vão aonde são
chamados seriamente, com fé, fervor e confiança. Eles não gostam de ser usados
em experiências, nem de dar espetáculo. Ao contrário, gostam de instruir
aqueles que os interrogam sem ideias preconcebidas. Os Espíritos levianos, que
se divertem de todos os modos, vão a toda parte e de preferência aos lugares
onde encontram ocasião para mistificar. Os maus são atraídos pelos maus
pensamentos, e por maus pensamentos devemos compreender todos aqueles que não
se conformam com os princípios da caridade evangélica. Assim, pois, quem quer
que traga a uma reunião sentimentos contrários a esses preceitos, traz consigo
Espíritos desejosos de semear a perturbação, a discórdia e os desafetos.
A comunhão de pensamentos e de sentimentos para o bem é, assim, uma condição primordial e
não é possível encontrar essa comunhão num
meio heterogêneo, onde têm acesso paixões inferiores como o orgulho, a inveja e
o ciúme, paixões que sempre se revelam pela malevolência e pela acrimônia da
linguagem, por mais espesso que seja o véu com que se procure encobri-las. Eis
o abcda Ciência Espírita. Se quisermos fechar a
porta desse recinto aos maus Espíritos, comecemos por fechar-lhes a porta de
nossos corações e evitemos tudo quanto lhes possa conferir poder sobre nós. Se
algum dia a Sociedade se tornasse joguete dos Espíritos enganadores, é que
a ela teriam sido atraídos. Por quem? Por aqueles nos quais eles encontram eco,
pois eles vão apenas aonde sabem que são escutados. É conhecido
o provérbio: Dize-me com quem
andas e dir-te-ei quem és. Podemos parodiá-lo em relação
aos nossos Espíritos simpáticos, dizendo: Dize-me o que pensas e dir-te-ei com
quem andas.
Ora, os pensamentos se traduzem
por atos. Se admitirmos que a discórdia, o orgulho, a inveja e o ciúme não
podem ser inspirados senão por maus Espíritos, aqueles que aqui trouxessem
elementos de desunião suscitariam entraves, com o que indicariam a natureza de
seus satélites ocultos. Então sópoderíamos lamentar sua presença no seio da
Sociedade. Queira Deus - e assim o espero - que isto nunca aconteça, e que,
auxiliados pelos bons Espíritos, se a estes nos tornarmos favoráveis, a
Sociedade se consolide, tanto pela consideração que tiver merecido, quanto pela
utilidade de seus trabalhos.
(…) Se tivéssemos em mira apenas
experiências para satisfação de nossa curiosidade, a natureza das comunicações
seria mais ou menos indiferente, pois nelas veríamos somente o que elas são.
Como, porém, em nossos estudos não buscamos uma diversão para nós, nem para o
público, mas o que queremos são comunicações verdadeiras, para isso
necessitamos da simpatia dos bons Espíritos, e essa simpatia só é conseguida pelos que afastam os maus
com a sinceridade de seu coração.[2]
"O perigo está no império que os maus Espíritos exercem sobre
as pessoas”
“Dizer que Espíritos levianos
jamais se introduziram em nosso meio, para encobrirmos qualquer ponto
vulnerável de nossa parte, seria muita presunção de perfeição. Os Espíritos
superiores podem até mesmo
permiti-lo, a fim de experimentar a nossa perspicácia e o nosso zelo na busca
da verdade. Entretanto, o nosso raciocínio deve pôr-nos em guarda contra as
ciladas que nos podem ser armadas e em todos os casos dá-nos os meios de
evitá-las.
O objetivo da Sociedade não é apenas
a pesquisa dos princípios da Ciência Espírita. Ela vai mais longe. Estuda
também as suas consequências morais, pois é principalmente nestas que está a sua verdadeira utilidade.
Ensinam os nossos estudos que o
mundo invisível que nos circunda reage constantemente sobre o mundo visível e
no-lo mostram como uma das forças da Natureza. Conhecer os efeitos dessa força
oculta que nos domina e nos subjuga malgrado nosso, não será ter a chave de muitos problemas, as
explicações de uma porção de fatos que passam despercebidos? Se esses efeitos
podem ser funestos, conhecer a causa do mal não é ter
um meio de preservar-se contra ele, assim como o conhecimento das propriedades
da eletricidade nos deu o meio de atenuar os desastrosos efeitos do raio? Se
então sucumbirmos, não nos poderemos queixar senão de nós mesmos, porque a ignorância
não nos servirá de desculpa. O
perigo está no império que os
maus Espíritos exercem sobre as pessoas, o que não é apenas
uma coisa funesta do ponto de vista dos erros de princípios que eles podem
propagar, como ainda do ponto de vista dos interesses da vida material.
Uma das táticas do maus Espíritos para alcançar os seus fins é semear a desunião
“Ensina a
experiência que jamais nos abandonamos impunemente ao domínio dos maus
Espíritos, porque suas intenções jamais podem ser boas. Uma de suas táticas
para alcançar os seus fins é a desunião, pois sabem muito bem que
podem facilmente dominar quem estiver sem apoio. Assim, o seu primeiro cuidado,
quando querem apoderar-se de alguém, é sempre inspirar-lhe a desconfiança e o
isolamento, a fim de que ninguém possa desmascará-los esclarecendo-o com
conselhos salutares. Uma vez senhores do terreno, podem à vontade
fascinar a pessoa com promessas sedutoras; subjugá-la por meio da lisonja às suas inclinações, para o que
aproveitam o lado fraco que descobrem a fim de melhor fazê-la sentir, depois, a
amargura das decepções; feri-la nas suas afeições; humilhá-la no seu orgulho e,
muitas vezes, elevá-la por um instante apenas para precipitá-la de mais alto.
Eis, senhores, o que nos mostram
os exemplos que a cada momento se desdobram aos nossos olhos, tanto no mundo
dos Espíritos quanto no mundo corpóreo, circunstância que podemos aproveitar
para nós próprios, ao mesmo tempo que procuramos torná-la proveitosa aos
outros.
(…) Uma sociedade espírita requer
outra condição - a assistência dos bons Espíritos - se quisermos obter
comunicações sérias, porque dos maus, caso lhes permitamos tomarem pé, nada
obteremos senão mentiras, decepções e mistificação. Este é o
preço de sua própria existência, pois os maus serão os primeiros agentes de sua
destruição. Eles a minarão pouco a pouco, caso não a derrubem logo de início.
Sem homogeneidade não haverá comunhão de pensamentos e, portanto,
não serão possíveis nem calma nem recolhimento. Ora, os bons só se apresentam onde encontram tais
condições. Como encontrá-las numa reunião onde as crenças são divergentes, onde
alguns nem mesmo creem e, por conseguinte, onde domina incessantemente o
espírito de oposição e de controvérsia? Eles sóassistem aos que desejam
ardentemente esclarecer-se para o bem, sem segundas intenções, e não para
satisfazer uma vã curiosidade.
Querer formar uma sociedade
espírita fora destas condições seria dar provas da mais absoluta ignorância dos
princípios mais elementares do Espiritismo.
(…) Aliás, nós possuímos um meio
infalível para não temer nenhuma rivalidade. É o que nos dáSão Luís: Que
haja entre vós compreensão e amor, disse-nos ele. Trabalhemos,
pois, para nos compreendermos. Lutemos com os outros, mas lutemos com caridade
e com abnegação. Que o amor ao próximo esteja inscrito em nossa bandeira e seja
a nossa divisa. Com isto desafiaremos a zombaria e a influência dos maus
Espíritos.(…)[3]
(…) "A tática ora em ação
pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada com novo ardor, é a
de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e suscitando entre eles a
desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na armadilha, e tende certeza de
que quem quer que procure, seja por que meio for, romper a boa harmonia, não
pode ter boas intenções. Eis por que vos advirto para que tenhais a maior
circunspeção na formação dos vossos grupos, não só para a vossa tranquilidade, mas no
próprio interesse dos vossos trabalhos.
A natureza dos trabalhos
espíritas exige calma e recolhimento. Ora, isto não é possível
se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de sentimentos malévolos.
Se houver fraternidade, não haverá sentimentos
malévolos, mas não pode haver fraternidade com egoístas, ambiciosos e
orgulhosos. Com orgulhosos que se chocam e se ferem por tudo; com ambiciosos
que se desiludem quando não têm a supremacia; com egoístas que só pensam em si mesmos, a cizânia não
tardará a ser introduzida. Daí,
vem a dissolução. É o que queriam nossos inimigos e é o
que tentarão fazer.
Se um grupo quiser estar em
condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, é preciso
que nele reine um sentimento fraterno. Todo grupo ou sociedade que se formar
sem ter por base acaridade
efetiva não
terá vitalidade, enquanto os que
se formarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros
de uma mesma família que, não podendo viver todos sob o mesmo teto, moram em
lugares diversos. Entre eles, a rivalidade seria uma insensatez, pois ela não
poderia existir onde reina a verdadeira caridade, porque a caridade não pode
ser entendida de duas maneiras. Reconhecei, pois, o verdadeiro espírita pela
prática da caridade em pensamentos, palavras e atos, e dizei a vós mesmos que
aquele que em sua alma nutre sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja e de ciúme mente para
si mesmo se deseja compreender e praticar o Espiritismo.
O egoísmo e o orgulho matam as
sociedades particulares, como matam os povos e as sociedades em geral. Lede a
história e vereis que os povos sucumbem sob o amplexo desses dois mortais
inimigos da felicidade humana. Quando se apoiarem nas bases da caridade, serão
indissolúveis, porque estarão em paz entre si e consigo mesmos, cada um
respeitando os bens e os direitos dos vizinhos. Essa será a nova era predita, da qual o
Espiritismo é o precursor, e para a qual todo
espírita deve trabalhar, cada um na sua esfera de atividade. É uma
tarefa que lhes incumbe, e da qual serão recompensados conforme a maneira pela
qual a tenham realizado, pois Deus saberádistinguir os que no Espiritismo só procuraram a sua satisfação pessoal
daqueles que ao mesmo tempo trabalharam pela felicidade de seus irmãos.[4]
Encerramos aqui essas breves
reflexões sobre o que Allan Kardec considera importante para o bom andamento
dos grupos sérios, e de que ele mesmo o exemplo. Aos final de cada trecho
extraído de suas orientações nós incluímos a referência ao texto integral, a
fim de que cada um que queira lê-lo na íntegra
saiba onde encontrá-lo.
Incluímos as definições de dois
termos que foram utilizados por Kardec nos textos acima, que buscamos nos
dicionários do século XIX.
Circunspecção:
Vigilância prudente que se exerce sobre suas palavras e suas ações, atento a
todas as circunstâncias. Discrição, reflexão, reserva, moderação, sabedoria.
Agir, falar com circunspecção. Atenção, discernimento, precaução, critério. Contrários:
imprudência, leviandade, temeridade.
Circunspecto: que
presta muita atenção ao que diz e faz; atento, ajuizado, discreto, prudente,
refletido, reservado, sábio. Contrários:
aventureiro, imprudente, leviano, temerário.
Recolhimento: ação de
se recolher. Buscar o recolhimento na solitude. Estado de uma pessoa que se
recolhe.
Recolher-se: reunir
em si mesmo toda sua atenção, para ocupar-se somente de uma coisa. Recolher-se
antes de falar. Reunir, recolher suas forças. Inferir, tirar alguma dedução. (Nouveau
Dictionnaire Universel,de Lachâtre)
[1] Revista
Espírita, fevereiro de 1859 - Os
agêneres
[2] Revista
Espírita, julho de 1859 - Sociedade Parisiense - Discurso de encerramento do
ano social 1858-1859.
[3] Revista
Espírita, julho de 1859 - Sociedade
Parisiense - Discurso de encerramento do ano social 1858-1859.
[4] Revista
Espírita, fevereiro de 1862 - Cumprimentos
de ano-novo.
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