quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Origem da obra kardequiana no Brasil


Origem da obra kardequiana no Brasil
…] o primeiro livro da Codificação Kardequiana é manancial tão rico de valores morais para o caminho humano que bem pode ser considerado não apenas como revelação da esfera superior, mas igualmente como primeiro marco da Religião dos Espíritos, em bases de sabedoria e amor, a refletir o Evangelho sob a inspiração de Nosso Senhor Jesus Cristo. – Emmanuel¹
Jorge Damas Martins
O marco maior da Doutrina Espírita no mundo – como o Consolador prometido por Jesus (João, 14:16 e 17) – foi o lançamento de O livro dos espíritos, em 1857.
Este marco descortinou para a humanidade uma nova era de esperança, estabelecendo uma parceria indestrutível entre o aquém e o além. Esperança, sim! Pois a sabedoria do editor-livreiro Édouard Dentu (1830-1884) deu a lume um volume com a capa na cor verde da esperança. Tal iniciativa fez o pioneiro espírita J. Chapelot, grande escritor da cidade progressista de Bordeaux, escrever em 1863: “Verde não é o símbolo da Esperança? E a Esperança não é o símbolo da Caridade, que é o nosso lema?” (Réflexions sur le spiritisme: les spirites et leurs contradicteurs,2 pt. 1, cap. IV).
Esta esperança fez com que muitas pessoas da França e do estrangeiro procurassem o seu autor encarnado, Allan Kardec, visando mais esclarecimentos, dirimir dúvidas, obter provas e, principalmente, um resumo do grande livro do Espiritismo. Kardec, educador por excelência, usa toda a sua didática – como se estivesse escrevendo a meninos – e lança em 15 de janeiro de 1862 um opúsculo sensacional: O espiritismo na sua mais simples expressão. Seu espírito pedagógico chega a dar, no anúncio de lançamento, o subtítulo: “A Doutrina Espírita popularizada”. Ele mesmo justifica:
O objetivo desta publicação é dar, num panorama muito sucinto, um histórico do Espiritismo e uma ideia suficiente da Doutrina dos Espíritos, a fim de que se lhe possa compreender o objetivo moral e filosófico. Pela clareza e sim plicidade do estilo, procuramos pô-la ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os verdadeiros espíritas para ajudarem a sua propagação.³
Ora, foi precisamente com este opúsculo, que o anjo Ismael introduziu o pensamento espírita codificado por Allan Kardec nas terras brasileiras, que estão sob a direção deste guia, delegada pelo Governador planetário – Jesus Cristo. Esta ação espiritual é revelada pelo Espírito Humberto de Campos: “[…] Em 1860 surgem as primeiras publicações espiritistas. […]”.4,5
Vamos aos fatos que materializaram a ação espiritual de Ismael.
Em 1862, o Sr. Alexandre Canu publicou em língua portuguesa este famoso opúsculo com o seguinte título: O espiritismo na sua mais simples expressão: Exposto summario do ensino dos espíritos e das suas manifestações.6 Ele ainda informa que o seu texto foi “traduzido do francês com a autorização do autor”, Allan Kardec: “Autor do Livro dos Espíritos e Diretor da Revista espiritista”.7
Ele era secretário das sessões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundada por Allan Kardec, em 1858.
Este livro em português foi impresso em Paris e distribuído pelos “Vª. J.-P. Aillaud, Molon e Cª. – Livreiros de Suas Majestades o Imperador do Brasil e el-Rei de Portugal,8 rua Saint-André-des-Arts, 47”.9 A sua gráfica também ficava nesta cidade francesa: Typographie Rignoux, rua Monsieur-le-Prince, 31.
Folga-me a notícia da colaboração de D. Pedro II na história do Espiritismo. Seu liberalismo era de fato surpreendente. Aliás, é como ensina Emmanuel:
Allan Kardec, todavia, na sua missão de esclarecimento e consolação, fazia-se acompanhar de uma plêiade de companheiros e colaboradores, cuja ação regeneradora não se manifestaria tão somente nos problemas de ordem doutrinária, mas em todos os departamentos da atividade intelectual do século XIX. […]10
1.   Pedro II é um bom exemplo disto.
Alexandre Canu era “Professor em Paris”, por isso que o educador Allan Kardec o chama de “colega”, em artigo deste professor publicado na Revista Espírita.11 O opúsculo informa que ele residia na rua Lamartine, 46, em Paris. No Prólogo o tradutor registra palavras interessantes:
Ainda que pouco versado em estilo português, porém movido da importância do assunto assombroso de que aqui se trata, e que está hoje maravilhando o mundo inteiro, e também da necessidade de espalhá-lo, quanto antes, por toda a parte, não duvidei de traduzir esta obrazinha elementar, já vertida em muitas línguas, a fim de levá-la ao conhecimento dos povos que falam a língua portuguesa, e pô-los em estado de se estabelecerem numa descoberta tão espantosa, por meio das obras especiais do homem eminente [Allan Kardec] que foi o primeiro propagador, e ainda é hoje o maior vulgarizador desta ciência sublime, que há certamente de transformar em pouco tempo a humanidade; descansando eu, quanto à tradução, na indulgência daqueles que, nas cousas desta ordem, antes consideram o fundo que a forma. O Tradutor, A. C.12
O que significa, em suas palavras: “Ainda que pouco versado em estilo português […]”? É uma história muito interessante. Vamos aos fatos:
Alexandre Canu chegou a morar no Brasil em 1842, numa leva de 100 famílias francesas, contratadas por D. Pedro II, para fundar, pelo sistema socialista de François Marie Charles Fourier (1772-1837) – filósofo e socialista francês –, a Colônia do Sahy, em Santa Catarina (RS). Essas famílias foram selecionadas por suas crenças espiritualistas pelo Sr. Jean- -Baptiste-Ambroise Marcellin Jobard (1792-1861),13 futuro presidente honorário da Sociedade Espírita. Entre os selecionados para aportarem no Brasil, destacamos o eminente Dr. Benoît Jules Mure (1809-1858) – introdutor da Homeopatia e do Magnetismo espiritualista em nossas terras e fundador da escola Hahnemaniana.14
A imprensa divulgou o projeto da Colônia do Sahy. O Dr. Benoît Mure era discípulo de Charles Fourier – um dos precursores do Espiritismo. Mure era partidário das doutrinas societárias sobre a colonização e propôs trazer da França 100 famílias [cerca de 500 pessoas] de “oficiais de ofício, como mestres, diretores, & C.”, as quais pretendia estabelecer no Brasil sob a forma indicada pelo socialista Fourier.
É bom lembrar que o Dr. Bezerra de Menezes destaca o pensamento reencarnacionista de Fourier – “o criador da escola falansteriana” – em sua famosa carta a seu irmão mais velho, Manoel Soares da Silva Bezerra:
Onde o velho que não queira estar seguro de renascer e de levar à futura existência a experiência do presente? Pretender que esse desejo deva ficar sem realização é admitir que Deus nos pode enganar. É preciso reconhecer que já temos vivido antes de sermos o que somos e que muitas outras vidas nos esperam e outras em uma esfera superior ou extramundana, com um corpo mais sutil e sentidos mais delicados.15,1
Mas qual o motivo da escolha do Brasil para esta missão colonizadora? É que o Dr. Mure costumava repetir aos gritos, num profético clamor: “Do Brasil há de partir a luz, que deve alumiar o mundo sábio”. (Archivo médico brasileiro, tomo III, n. 10, p. 222, jun. 1847.)
O Dr. Mure viajou pelo sul do Brasil e conseguiu encontrar em Santa Catarina um lugar apropriado para o estabelecimento da Colônia, devendo à generosidade do tenente-coronel Francisco de Oliveira Camacho (1784-1862) – homem de muitas posses –, terreno suficiente para esse fim.17 Mure então solicita ao governo imperial, não como donativo, mas como simples empréstimo, a quantia necessária para o transporte das 100 famílias da França para o Brasil e para o sustento delas no primeiro ano em que estivessem no império, comprometendo- se a pagar esse empréstimo com máquinas de vapor. Assim, D. Pedro II apoia o seu projeto:
O Dr. Mure, sabemos que foi ultimamente apresentado a S.M.I., que o tratou com benevolência e mostrou grande interesse pela colônia societária. (O Brasil, v. I, n. 115, p. 4, 6 de abril de 1841.)
Voltemos ao professor Alexandre Canu. Ele afastou-se da Colônia do Sahy, em 1843, por julgar inviável o projeto, mas teve sorte de prosperar na corte, no Rio de Janeiro, onde veio a contrair segundas núpcias, retornando a Paris em 1846.
E, agora, o mais importante: ele era médium psicofônico e sua segunda esposa, Mme. Canu, brasileira, médium sonambúlica inconsciente. Mas o que nos surpreende é saber que os dois prestaram relevantes serviços na composição da primeira edição de O livro dos espíritos, de 1857. 18
Saber que há contribuição brasileira na formação do livro basilar da Terceira Revelação, dá um novo sabor na apreciação de sua leitura. Então, desde os primórdios da Codificação Espírita, França e Brasil já estavam unidos ao Consolador Prometido.
Vale a pena refletir sobre as palavras ricas de experiência do professor Alexandre Canu, a respeito da obra magna do Espiritismo: “Estuda, lê, relê, experimenta, trabalha e, sobretudo, não desanimes, porque a coisa vale a pena”.19
REFERÊNCIAS:
1 XAVIER, Francisco C. Religião dos espíritos. Pelo Espírito Emmanuel. 22. ed. 3. imp. Brasília, FEB, 2013. Religião dos espíritos, p. 10.
2 Em 2005, a editora Madras de São Paulo, baseada no resgate que fizemos desta obra junto à BNF, publicou a tradução de Roseane Resende de Freitas com o título: O problema da justiça de Deus e do destino do homem.
3 KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 5, n. 1, p. 51, jan. 1862. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2009.
4 XAVIER, Francisco C. Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho. Pelo Espírito Humberto de Campos. Brasília: FEB, 2015. cap. 23, p. 142.
5 Outro destacado livro dos anos de 1860: Os tempos são chegados, do francês e professor Casimir Lieutaud. Ver a biografia deste autor no livro Túnel do tempo. MONTEIRO, Eduardo Carvalho [Pesquisa: Jorge Damas Martins]. São Paulo: Ed. Madras, 2005. p. 27-115.
6 N.R.: Título original da tradução de 1862.
7 N.R.: Trecho retirado da folha de rosto do opúsculo traduzido por Alexandre Canu.
8 Luís I, “O Popular”, “O Bom”, reinou de 1861 a 1889.
9 N.R.: Folha de rosto do opúsculo citado.
10 XAVIER, Francisco C. A caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 38. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2015. cap. 23, p. 185.
11 KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 4, n. 1, p. 51, jan. 1861. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2010. Carta sobre a incredulidade, p. 35.
12 CANU, Alexandre. O espiritismo na sua mais simples expressão: exposto summario dos espíritos e das suas manifestações. 3. ed. Paris, 1862.
13 Ver sua biografia em Reformador, ano 125, n. 2.145, p. 35(481)-37(483), dez. 2007.
14 Para maior conhecimento da chegada dos franceses à Colônia do Sahy, ver o livro Em verdade vos digo. Organizador: Júlio Couto Damasceno [Prefácio: Jorge Damas Martins]. Rio de Janeiro: CRBBM, 2008. p. 15.
15 MENEZES, Bezerra de. Uma carta de Bezerra de Menezes. 9. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014. A Doutrina Espírita como filosofia teogônica, p. 69 [ver nota de rodapé 203 da op. cit.].
16 Para maior visão do pensamento espírita de Fourier, ver o livro A pluralidade das existências da alma. PEZZANI, André. [Introdução e notas: Jorge Damas Martins]. Rio de Janeiro: Associação Editora Espírita F. V. Lorenz, 2009. liv. terceiro, cap. VI.
17 Há um emocionante e intrigante romance espírita que trata, com dados históricos fidedignos, da colonização do Sahy, inspirado nas ideias de Fourier: O magneto. CAMARGO, Mauro. 2. ed. Bragança Paulista (SP): 3 de Outubro Editora Ltda., jun. de 2011.
18 Ver O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária. ABREU, Canuto. São Paulo: Edições LFU, 4/1992. cap. 7, p. 148.
19 KARDEC, Allan. Revista espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 4, n. 2, p. 88, fev. 1861. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2010.


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