Origem da obra kardequiana no Brasil
…] o primeiro livro da
Codificação Kardequiana é manancial tão rico de valores morais para o caminho
humano que bem pode ser considerado não apenas como revelação da esfera
superior, mas igualmente como primeiro marco da Religião dos Espíritos, em
bases de sabedoria e amor, a refletir o Evangelho sob a inspiração de Nosso
Senhor Jesus Cristo. – Emmanuel¹
Jorge Damas Martins
O marco maior da Doutrina
Espírita no mundo – como o Consolador prometido por Jesus (João, 14:16 e 17) –
foi o lançamento de O livro dos espíritos, em 1857.
Este marco descortinou para a
humanidade uma nova era de esperança, estabelecendo uma parceria indestrutível
entre o aquém e o além. Esperança, sim! Pois a sabedoria do editor-livreiro
Édouard Dentu (1830-1884) deu a lume um volume com a capa na cor verde da
esperança. Tal iniciativa fez o pioneiro espírita J. Chapelot, grande escritor
da cidade progressista de Bordeaux, escrever em 1863: “Verde não é o símbolo da
Esperança? E a Esperança não é o símbolo da Caridade, que é o nosso lema?” (Réflexions sur le spiritisme: les spirites et leurs
contradicteurs,2 pt. 1, cap. IV).
Esta esperança fez com que
muitas pessoas da França e do estrangeiro procurassem o seu autor encarnado,
Allan Kardec, visando mais esclarecimentos, dirimir dúvidas, obter provas e,
principalmente, um resumo do grande livro do Espiritismo. Kardec, educador por
excelência, usa toda a sua didática – como se estivesse escrevendo a meninos –
e lança em 15 de janeiro de 1862 um opúsculo sensacional: O espiritismo na sua
mais simples expressão. Seu espírito pedagógico chega a dar, no anúncio de
lançamento, o subtítulo: “A Doutrina Espírita popularizada”. Ele mesmo
justifica:
O objetivo desta publicação é
dar, num panorama muito sucinto, um histórico do Espiritismo e uma ideia
suficiente da Doutrina dos Espíritos, a fim de que se lhe possa compreender o
objetivo moral e filosófico. Pela clareza e sim plicidade do estilo, procuramos
pô-la ao alcance de todas as inteligências. Contamos com o zelo de todos os
verdadeiros espíritas para ajudarem a sua propagação.³
Ora, foi precisamente com este
opúsculo, que o anjo Ismael introduziu o pensamento espírita codificado por
Allan Kardec nas terras brasileiras, que estão sob a direção deste guia,
delegada pelo Governador planetário – Jesus Cristo. Esta ação espiritual é
revelada pelo Espírito Humberto de Campos: “[…] Em 1860 surgem as primeiras
publicações espiritistas. […]”.4,5
Vamos aos fatos que
materializaram a ação espiritual de Ismael.
Em 1862, o Sr. Alexandre Canu
publicou em língua portuguesa este famoso opúsculo com o seguinte título: O
espiritismo na sua mais simples expressão: Exposto summario do ensino dos
espíritos e das suas manifestações.6 Ele ainda informa que o seu texto foi
“traduzido do francês com a autorização do autor”, Allan Kardec: “Autor do
Livro dos Espíritos e Diretor da Revista espiritista”.7
Ele era secretário das sessões
da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, fundada por Allan Kardec, em
1858.
Este livro em português foi
impresso em Paris e distribuído pelos “Vª. J.-P. Aillaud, Molon e Cª. –
Livreiros de Suas Majestades o Imperador do Brasil e el-Rei de Portugal,8 rua
Saint-André-des-Arts, 47”.9 A sua gráfica também ficava nesta cidade francesa:
Typographie Rignoux, rua Monsieur-le-Prince, 31.
Folga-me a notícia da
colaboração de D. Pedro II na história do Espiritismo. Seu liberalismo era de
fato surpreendente. Aliás, é como ensina Emmanuel:
Allan Kardec, todavia, na sua
missão de esclarecimento e consolação, fazia-se acompanhar de uma plêiade de
companheiros e colaboradores, cuja ação regeneradora não se manifestaria tão
somente nos problemas de ordem doutrinária, mas em todos os departamentos da
atividade intelectual do século XIX. […]10
1.
Pedro II é um bom exemplo disto.
Alexandre Canu era “Professor
em Paris”, por isso que o educador Allan Kardec o chama de “colega”, em artigo
deste professor publicado na Revista Espírita.11 O opúsculo informa que ele
residia na rua Lamartine, 46, em Paris. No Prólogo o tradutor registra palavras
interessantes:
Ainda que pouco versado em
estilo português, porém movido da importância do assunto assombroso de que aqui
se trata, e que está hoje maravilhando o mundo inteiro, e também da necessidade
de espalhá-lo, quanto antes, por toda a parte, não duvidei de traduzir esta
obrazinha elementar, já vertida em muitas línguas, a fim de levá-la ao
conhecimento dos povos que falam a língua portuguesa, e pô-los em estado de se
estabelecerem numa descoberta tão espantosa, por meio das obras especiais do
homem eminente [Allan Kardec] que foi o primeiro propagador, e ainda é hoje o
maior vulgarizador desta ciência sublime, que há certamente de transformar em
pouco tempo a humanidade; descansando eu, quanto à tradução, na indulgência
daqueles que, nas cousas desta ordem, antes consideram o fundo que a forma. O
Tradutor, A. C.12
O que significa, em suas
palavras: “Ainda que pouco versado em estilo português […]”? É uma história
muito interessante. Vamos aos fatos:
Alexandre Canu chegou a morar
no Brasil em 1842, numa leva de 100 famílias francesas, contratadas por D.
Pedro II, para fundar, pelo sistema socialista de François Marie Charles
Fourier (1772-1837) – filósofo e socialista francês –, a Colônia do Sahy, em
Santa Catarina (RS). Essas famílias foram selecionadas por suas crenças
espiritualistas pelo Sr. Jean- -Baptiste-Ambroise Marcellin Jobard
(1792-1861),13 futuro presidente honorário da Sociedade Espírita. Entre os
selecionados para aportarem no Brasil, destacamos o eminente Dr. Benoît Jules
Mure (1809-1858) – introdutor da Homeopatia e do Magnetismo espiritualista em
nossas terras e fundador da escola Hahnemaniana.14
A imprensa divulgou o projeto
da Colônia do Sahy. O Dr. Benoît Mure era discípulo de Charles Fourier – um dos
precursores do Espiritismo. Mure era partidário das doutrinas societárias sobre
a colonização e propôs trazer da França 100 famílias [cerca de 500 pessoas] de
“oficiais de ofício, como mestres, diretores, & C.”, as quais pretendia
estabelecer no Brasil sob a forma indicada pelo socialista Fourier.
É bom lembrar que o Dr. Bezerra
de Menezes destaca o pensamento reencarnacionista de Fourier – “o criador da
escola falansteriana” – em sua famosa carta a seu irmão mais velho, Manoel
Soares da Silva Bezerra:
Onde o velho que não queira
estar seguro de renascer e de levar à futura existência a experiência do
presente? Pretender que esse desejo deva ficar sem realização é admitir que
Deus nos pode enganar. É preciso reconhecer que já temos vivido antes de sermos
o que somos e que muitas outras vidas nos esperam e outras em uma esfera
superior ou extramundana, com um corpo mais sutil e sentidos mais
delicados.15,1
Mas qual o motivo da escolha do
Brasil para esta missão colonizadora? É que o Dr. Mure costumava repetir aos
gritos, num profético clamor: “Do Brasil há de partir a luz, que deve alumiar o
mundo sábio”. (Archivo médico brasileiro, tomo III, n. 10, p. 222, jun. 1847.)
O Dr. Mure viajou pelo sul do
Brasil e conseguiu encontrar em Santa Catarina um lugar apropriado para o
estabelecimento da Colônia, devendo à generosidade do tenente-coronel Francisco
de Oliveira Camacho (1784-1862) – homem de muitas posses –, terreno suficiente
para esse fim.17 Mure então solicita ao governo imperial, não como donativo,
mas como simples empréstimo, a quantia necessária para o transporte das 100
famílias da França para o Brasil e para o sustento delas no primeiro ano em que
estivessem no império, comprometendo- se a pagar esse empréstimo com máquinas
de vapor. Assim, D. Pedro II apoia o seu projeto:
O Dr. Mure, sabemos que foi ultimamente
apresentado a S.M.I., que o tratou com benevolência e mostrou grande interesse
pela colônia societária. (O Brasil, v. I, n. 115, p. 4, 6 de abril de 1841.)
Voltemos ao professor Alexandre
Canu. Ele afastou-se da Colônia do Sahy, em 1843, por julgar inviável o
projeto, mas teve sorte de prosperar na corte, no Rio de Janeiro, onde veio a
contrair segundas núpcias, retornando a Paris em 1846.
E, agora, o mais importante:
ele era médium psicofônico e sua segunda esposa, Mme. Canu, brasileira, médium
sonambúlica inconsciente. Mas o que nos surpreende é saber que os dois
prestaram relevantes serviços na composição da primeira edição de O livro dos
espíritos, de 1857. 18
Saber que há contribuição
brasileira na formação do livro basilar da Terceira Revelação, dá um novo sabor
na apreciação de sua leitura. Então, desde os primórdios da Codificação
Espírita, França e Brasil já estavam unidos ao Consolador Prometido.
Vale a pena refletir sobre as
palavras ricas de experiência do professor Alexandre Canu, a respeito da obra
magna do Espiritismo: “Estuda, lê, relê, experimenta, trabalha e, sobretudo,
não desanimes, porque a coisa vale a pena”.19
REFERÊNCIAS:
1 XAVIER, Francisco C. Religião
dos espíritos. Pelo Espírito Emmanuel. 22. ed. 3. imp. Brasília, FEB, 2013.
Religião dos espíritos, p. 10.
2 Em 2005, a editora Madras de
São Paulo, baseada no resgate que fizemos desta obra junto à BNF, publicou a
tradução de Roseane Resende de Freitas com o título: O problema da justiça de
Deus e do destino do homem.
3 KARDEC, Allan. Revista
Espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 5, n. 1, p. 51, jan. 1862. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2009.
4 XAVIER, Francisco C. Brasil,
coração do mundo, pátria do evangelho. Pelo Espírito Humberto de Campos.
Brasília: FEB, 2015. cap. 23, p. 142.
5 Outro destacado livro dos
anos de 1860: Os tempos são chegados, do francês e professor Casimir Lieutaud.
Ver a biografia deste autor no livro Túnel do tempo. MONTEIRO, Eduardo Carvalho
[Pesquisa: Jorge Damas Martins]. São Paulo: Ed. Madras, 2005. p. 27-115.
6 N.R.: Título original da
tradução de 1862.
7 N.R.: Trecho retirado da
folha de rosto do opúsculo traduzido por Alexandre Canu.
8 Luís I, “O Popular”, “O Bom”,
reinou de 1861 a 1889.
9 N.R.: Folha de rosto do
opúsculo citado.
10 XAVIER, Francisco C. A
caminho da luz. Pelo Espírito Emmanuel. 38. ed. 2. imp. Brasília: FEB, 2015.
cap. 23, p. 185.
11 KARDEC, Allan. Revista
espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 4, n. 1, p. 51, jan. 1861. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2010. Carta sobre a
incredulidade, p. 35.
12 CANU, Alexandre. O
espiritismo na sua mais simples expressão: exposto summario dos espíritos e das
suas manifestações. 3. ed. Paris, 1862.
13 Ver sua biografia em
Reformador, ano 125, n. 2.145, p. 35(481)-37(483), dez. 2007.
14 Para maior conhecimento da
chegada dos franceses à Colônia do Sahy, ver o livro Em verdade vos digo.
Organizador: Júlio Couto Damasceno [Prefácio: Jorge Damas Martins]. Rio de
Janeiro: CRBBM, 2008. p. 15.
15 MENEZES, Bezerra de. Uma
carta de Bezerra de Menezes. 9. ed. 1. imp. Brasília: FEB, 2014. A Doutrina
Espírita como filosofia teogônica, p. 69 [ver nota de rodapé 203 da op. cit.].
16 Para maior visão do
pensamento espírita de Fourier, ver o livro A pluralidade das existências da
alma. PEZZANI, André. [Introdução e notas: Jorge Damas Martins]. Rio de
Janeiro: Associação Editora Espírita F. V. Lorenz, 2009. liv. terceiro, cap.
VI.
17 Há um emocionante e
intrigante romance espírita que trata, com dados históricos fidedignos, da
colonização do Sahy, inspirado nas ideias de Fourier: O magneto. CAMARGO,
Mauro. 2. ed. Bragança Paulista (SP): 3 de Outubro Editora Ltda., jun. de 2011.
18 Ver O livro dos espíritos e
sua tradição histórica e lendária. ABREU, Canuto. São Paulo: Edições LFU,
4/1992. cap. 7, p. 148.
19 KARDEC, Allan. Revista
espírita: jornal de estudos psicológicos. ano 4, n. 2, p. 88, fev. 1861. Trad.
Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2010.
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